O fundo de poço da dependência química faz a vida do dependente químico entrar em colapso, pois realiza o trabalho de produzir dor, medo, vergonha, solidão e raiva. Ela cria estes sentimentos para que o dependente químico adquiriu o controle sobre o Eu. Cria assim a necessidade do alívio, prometendo que este virá com a modificação do humor.
No fundo de poço da dependência química o dependente químico detém um controle total da personalidade do dependente. Ela não se preocupa com os outros; nem com o próprio dependente químico. O que lhe interessa é ter e manter o controle de si e dos outros. O que lhe interessa é ficar “alta” usando álcool e outras drogas e atuando sentimentos que causam o prazer intenso e compulsivo.
Chamamos o fundo de poço da dependência química de “Colapso da Vida” porque nele a pessoa começa a sucumbir sob a tensão causada pela dor, raiva e medo crescentes, como resultado de um contínuo usar drogas.
A dependência química produz mais tensão e as pessoas não aguentam, até chegar a um ponto que suas vidas e personalidades desagregam-se. Chega o momento em que a pessoa sucumbe no emocional, mental, espiritual e físico, sob a tensão e o sofrimento causado pela dependência química.
Usar drogas desgraça a pessoa
No fundo de poço, usar drogas não produz mais muito prazer. A preocupação e as drogas produzem modificação no humor, mas há sofrimentos a que se tem de fugir. Embora a pessoa se sinta distante do sofrimento enquanto atua a presença é sentida de forma permanente.
A mágica da dependência química – embriaguez, pedrada – desfaz-se sob a tensão porque a pessoa vive debaixo de sobrecarga emocional. Usar drogas pode começar ser sentido como mais aborrecimento e uma ação meramente ritualística. Dependente químicos em recuperação relatam que a preocupação com o usar drogas e o viver num mundo de fantasia produzia mais prazer e alívio que o próprio usar drogas.
Chegando no fundo de poço da dependência química, os dependentes químicos comportam-se de uma forma que antes não achavam possíveis. O comportamento é levado ao extremo e a perda de domínio acaba assustando o dependente químico. No colapso da vida, os aspectos ameaçadores e que põem em perigo a vida tornam-se óbvio, para o dependente químico, família e amigos. Um grande perigo desta fase, é que o dependente químico está entregue ao processo da dependência química e não é capaz de quebrar o ciclo.
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Colapso da lógica da dependência química
No fundo de poço, a lógica da dependência química pode falhar. O comportamento da pessoa já não faz sentido e o dependente químico desiste de tentar dar sentido caindo num estilo de vida baseado no ritual doentio da dependência química.
Os dependentes químicos se agarram a um estilo de vida rígido, começam a se sentir desconfortáveis com o que não seja familiar. A dependência química implica um estilo de vida centrado na própria pessoa e a falta de flexibilidade acrescenta certo grau de bem-estar à vida do dependente químico.
Nós conhecemos a paz e a segurança que encontramos nos rituais e objetos familiares – especialmente em épocas de tensão. Isto também é verdade para o dependente químico, que poderá odiar usar drogas, mas encontra segurança nisso. Assim, em alturas de tensão, faz um recuo rápido a fim de usar drogas.
As situações novas são um pesadelo para o dependente químico. A vida encontra-se controlada pelo sistema de crenças doentio. A lógica da dependência química torna-se simples neste estágio.
Consiste em “usar drogas” e existir. Nesta fase, um dependente químico conviverá com pessoas e ideias que aumentem o estilo de vida doentio; qualquer outra coisa diferente é deixada para trás.
A capacidade de enfrentar o colapso
Resolver problemas emocionais é contrário ao processo da dependência química. O processo da dependência química é dependente de problemas não resolvidos e das tensões.
Sentimentos e problemas constituem uma desculpa para usar drogas. Lembremo-nos de uma panela de pressão cuja válvula de segurança não tem a pressão suficiente para soltar o vapor. Em breve, qualquer coisa terá de ceder.
Emocionalmente, é o que acontece ao dependente químico. Na Fundo de poço, o dependente químico tem tantos sentimentos por resolver que atinge um ponto de fraqueza emocional. Enfrentar situações não lhe proporciona a segurança para lidar com as pressões que vão criando. A pessoa sucumbe, emocionalmente.
A pessoa começa a chorar descontroladamente sem a menor razão. Uma dependente química em recuperação, contou-me que chorava sem controle cada vez que via o sol nascer. Mais tarde, teve consciência de que chorava todas as manhãs porque se apavorava ao pensar em ter de viver nem que fosse só mais um dia uma vida de dependente química.
Neste processo doentio, as pessoas têm ataques de fúria sem que, haja qualquer razão para eles. A raiva foi acumulando e tornando compacta se tornando fúria incontrolável, por vezes.
A paranoia surge quando o dependente químico começa a questionar tudo e a todos. “Por quê?” é uma pergunta angustiante que aparece dentro da pessoa. Isto leva a àquilo que geralmente se chama “ansiedade flutuante” atingindo os dependentes químicos da fase avançada e que pode durar por alguns momentos.
Aqueles que experimentam esta ansiedade sentem que o mundo se voltou contra eles e que ninguém se importa com eles. A doença da dependência química pode ser muito exacerbante para o dependente químico.
O relacionamento do dependente químico com os outros desmorona
O fato da ligação emocional mais importante do dependente químico se processar com a droga ou acontecimento já cobrou o seu preço. Os dependentes químicos sentem-se menos seguros na interação com os outros. Começam a pôr em questão a sua capacidade de estar com os outros. A sentir-se como se as pessoas pudessem ver através de si.
Um dependente químico relaciona-se com os outros os manipulando a fim de satisfazer as necessidades doentias. Para isto é necessária certa dose de autoconfiança, a capacidade de ser assertivo, de parecer desamparado para conseguir que os outros se ocupem dele.
Os dependentes químicos começam a sentir-se inseguros e começam a perder a sua capacidade de manipular. Encontram pessoas para se ocuparem deles, mas, estas o fazem por pena ou obrigação, não mais por serem manipuladas.
As pessoas que rodeiam o dependente químico compreendem o seu estilo de manipulação e reagem negativamente em relação a ele, ficando saturadas com ele e afastam-se. Grande parte do sofrimento dessas pessoas é provocado pelas relações com o dependente químico que tomam a decisão emocional de não acreditar na pessoa.
Para eles, o dependente químico está emocionalmente morto. A fim de protegerem os seus sentimentos, recusam-se a continuar, a considerar o dependente químico como uma pessoa.
Os dependentes químicos encontram-se apenas rodeados por pessoas que ficam com eles pelo sentimento de responsabilidade ou piedade, ou porque se sentiriam demasiadamente culpadas se o abandonassem, ou porque têm receio que o dependente químico sofra algum mal se forem embora.
Isto torna-se chantagem emocional, pois os dependentes químicos também tentam fomentar sentimentos de piedade, medo e culpa nos outros para que eles se mantenham por perto.
O dependente químico: querer estar sozinho
Nesta fase avançada da dependência química, os dependentes químicos podem afastar-se dos outros e tornar-se verdadeiros solitários. Ao fim, o ritual doentio do usar drogas é, com frequência, ato solitário realizado ou na presença de outros dependente químicos.
• Os dependentes à comida empanturram-se a maior parte das vezes sozinhos;
• O processo do jogo é uma estratégia particular, interior;
• Fazer pequenos roubos em lojas é um ato privado;
• Os dependentes ao sexo retiram-se para um mundo privado, muitas vezes ocupado apenas por outros dependentes ao sexo, ou mesmo por mais ninguém.
É natural à medida que a doença da dependência química se desenvolve e adquire mais controle na vida de uma pessoa, a capacidade de relacionamento comece a enfraquecer.
No fundo de poço da dependência química, existe pouca coisa na vida que seja permanente e não faça parte da dependência química. A pessoa tornou-se receosa da intimidade e mantém-se afastada. Os dependentes químicos acreditam que são os outros a causa dos seus problemas. Pensam que as pessoas não os podem compreender. Portanto, as pessoas devem ser evitadas.
O dependente químico: não querer estar sozinho
Dentro do dependente químico, a solidão e o isolamento criam um núcleo que anseia por ligação emocional com os outros. Os dependentes químicos têm medo de acabar sozinhos. No desespero, apresentam características infantis, esforçam-se por manter o contacto, agarrando-se à família, aos amigos e ficam perturbados se parece que as outras pessoas estão se afastando deles.
• Quando alguém sai de casa, o dependente químico tem de saber aonde a pessoa vai. Provavelmente, perguntará à pessoa, “Quando vais voltar?” E, “Tens mesmo de sair?”
O Eu da pessoa agarra-se à família e aos amigos neste estilo emocionalmente dependente.
Os dependentes químicos comportam-se como se dissessem às pessoas para se manterem afastadas, mas, quando as pessoas vão embora, ficam perturbados.
Podem-se ouvir do dependente químico frases como:
o “Não me deixe, só tenho você!”;
o “Desculpa, estou arrependido, prometo que vou melhorar.”;
o “Dê-me só mais uma oportunidade, prometo mudar.”;
o “Está bem, então vai embora! Ninguém quer saber de mim.”
Os dependentes químicos entram em pânico quando a família ou os amigos mostram qualquer raiva ou sofrimento, mesmo quando não está relacionado com eles. Será que vão me abandonar? É o pensamento do Eu.
O Dependente químico quer estar sozinho, mas o Eu tem medo de estar só. Muitas vezes, as pessoas que fazem parte da vida do dependente químico são da família. O Dependente químico não estranha isto, porque estar com os outros foi sempre um fardo para ele.
Problemas do dependente químico com o meio
Os dependentes químicos sempre experimentam os limites de quem os rodeia. Podem ter problemas com o emprego à medida que a dependência química começa a interferir com um maior número de aspectos na sua vida.
O comportamento tornou-se incontrolável que talvez tenham problemas legais. A excitação provocada por usar drogas e agir contra a lei, pode levar o dependente químico a prisões e mortes.
Os dependentes químicos podem precisar de dinheiro para manter a sua dependência química e recorrem a atividades ilegais (isto se aplica ao caso do jogo adictivo).
Os dependentes químicos começam a ter problemas financeiros. Gastam grandes quantidades de dinheiro para sustentar a dependência química, e esta ameaça o seu sustento.
Os dependentes químicos criam problemas no meio em que vivem porque os seus comportamentos ao usar drogas podem exceder os limites que a cultura em que estão inseridos pode aceitar.
• O alcoólico pode ser preso por beber e conduzir;
• O dependente ao sexo pode ser preso por frequentar prostitutas ou pode ser despedido por ter comportamentos inaceitáveis;
• A pessoa que faz pequenos furtos em lojas pode ser presa;
• A família do dependente à comida pode exigir que ele procure aconselhamento.
Sinais físicos de colapso e fundo do poço
A doença da dependência química pode progredir até um ponto onde a pessoa começa a apresentar sinais físicos de colapso.
A dependência química produz tensão e, depois de anos de tensão emocional e psicológica, a pessoa começa a apresentar problemas físicos. Todas as formas de dependência química, emocionais e psicológicos encontram-se boa parte do tempo sobrecarregada. Imagine-se a tensão que pesa sobre o coração e todos os outros órgãos do corpo. Diferentes adicções afetarão, com o passar do tempo, diferentes partes do corpo – o fígado do alcoólico, a garganta do bulímico ou as doenças sexualmente transmissíveis na promiscuidade sexual.
Os dependentes químicos não tomam cuidado com o corpo – é um objeto para ser usado e abusado. Não há maneira de calcular os danos físicos que a dependência química causa aos dependentes químicos, às famílias e aos amigos.
Pensamentos de suicídio no dependente químico
No processo da dependência química uma pessoa pode admitir, tentar ou, cometer o suicídio. Existem duas razões para isto:
- O sofrimento interior é tão grande que a pessoa quer acabar com ele, mas a promessa de encontrar alívio através da dependência química já não funciona. Querem que o sofrimento pare, mas não acreditam ser capazes de pará-lo. Um dependente químico já não acredita no seu Eu. O suicídio começa a fazer sentido, quando usam a lógica doentia da dependência química.
- Os dependentes químicos ficam com vergonha do seu lado adictivo e o odeiam tanto, que querem acabar com a relação doentia – ao ponto de cometerem um ato de homicídio contra o dependente químico. Ninguém odeia mais o dependente químico do que a pessoa que sofre da dependência química.
Conclusão
Os dependentes químicos não podem quebrar o processo doentio da dependência química; permanecem, no fundo de poço, até que surja uma forma de intervenção.
Aqueles que tentam quebrar o processo descobrem que a única coisa que conhecem é a dependência química e acabam regressando ao estilo de vida doentio.
Para se recuperarem, os dependentes químicos aprendem um novo estilo de vida. Trocam a dependência química por um novo estilo onde existem relações com as pessoas. Estas relações aumentam a satisfação pessoal e permitem crescer.
O mundo do dependente químico baseia-se num fluxo para o interior. Para entrar em recuperação, a pessoa tem de aprender a manter este fluxo para o exterior. Para os dependentes químicos no fundo de poço, isso é impossível sem ajuda.
As pessoas com adicções estão em desvantagem porque não sabem como se relacionar para fora de si. É por isso que a pessoa se conservará numa relação adictiva até se dar uma forma qualquer de intervenção.
Há muitas formas de intervenção. Consiste numa tentativa de quebrar a relação doentia da dependência química. Algumas têm êxito, outras não.
A dependência química pode ser reatada mesmo que tenha estado suspensa por longos períodos. Quantas vezes já assistimos uma pessoa acabar uma relação com alguém apenas para estabelecer um tipo idêntico de relação com outra pessoa diferente?
Os dependentes químicos em recuperação devem ter ciência que a dependência química não é apenas uma forma de interagir com a droga ou um acontecimento específico; é uma forma de interação com o Seu Eu e com o mundo.
Para entrar em recuperação, a pessoa terá não só de cessar a dependência emocional interior, mas também de se voltar para o Eu e para os outros. Ao fazer isto, a pessoa pode descobrir uma nova forma de viver, que poderá ser admirável e entusiasmante, embora vulnerável às lutas e ao medo.
Fabrício Selbman é Diretor do Grupo Recanto, rede de três clínicas de tratamento de dependentes químicos referência no Norte e Nordeste nesse segmento, e também é:
- Formado em marketing e pós-graduado em gestão empresarial;
- Especialista em Dependência Química pela UNIFESP. Especialização na Europa sobre o modelo de tratamento Terapia Racional Emotiva (TRE);
- Psicanalista pela Associação Brasileira de Estudos Psicanalíticos do Estado de Pernambuco (ABEPE);
- Professor de Especialização na Associação Brasileira de Estudos Psicanalíticos do Estado de Pernambuco (ABEPE);
- Diretor do Grupo Recanto, rede de três clínicas de tratamento de dependentes químicos referência no Norte e Nordeste nesse segmento.