As atividades saudáveis desempenham um papel crucial na recuperação de dependentes químicos, funcionando como contraponto ao comportamento compulsivo associado à dependência.
Desenvolver práticas positivas e enriquecedoras é essencial para promover a conexão com outras pessoas em recuperação, com os princípios de recuperação, com o próprio centro espiritual e com o ambiente ao redor.
As atividades saudáveis positivas dizem respeito à ligação, identificação, empenhamento, e ao fato de todos nós precisarmos nos sentirmos unidos a qualquer coisa. As atividades doentias da dependência química têm sobretudo a ver com a separação; as atividades saudáveis da recuperação dizem respeito ao relacionamento.
Muitas pessoas que conheço e estão em recuperação praticam uma atividade saudável simples que consiste em ler um pouco todas as manhãs ou todas as noites sobre recuperação e meditarem depois sobre o que acabaram de ler.
Esta atividade pessoal liga-os ao processo de recuperação, permitindo comprometerem-se diariamente com a recuperação. A recuperação envolve escolhas; a dependência química tem a ver com não se ter escolha.
As pessoas em recuperação precisam e continuamente escolhem a recuperação. As atividades saudáveis da recuperação são comportamentos que ajudam as pessoas a exercitar as suas escolhas.
As atividades saudáveis devem ser tanto públicas como privadas, tal como a dependência química é tanto pública como privada. Nas atividades saudáveis, as pessoas dedicam-se a comportamentos consistentes e habituais.
Ao desenvolverem atividades saudáveis de recuperação, os dependentes químicos ligam-se pelo hábito a novas crenças e valores que são o oposto daqueles que se encontram na dependência química.
Prendem-se, assim, a um processo de crescimento; comprometem-se a cuidar e a alimentar espiritualmente a si e aos outros. As atividades saudáveis são afirmações, uma forma de linguagem, um compromisso.
Através das atividades saudáveis, os dependentes químicos em recuperação aprendem a desenvolver e a dedicar-se a uma linguagem e a um estilo de vida de atenção a si próprios.
À medida que as pessoas em recuperação desenvolvem as suas próprias atividades saudáveis de recuperação, estão a aprender a agir corretamente com o seu EU.
A recuperação tem, na verdade, um código de conduta: deve tratar de si e dos outros de maneira respeitadora e que ofereça alimento espiritual. Tem que se ajudar a si e aos outros sempre que a ajuda for necessária, se puder ser feita de forma positiva.
Atividades Saudáveis e Espirituais
Este código de conduta encontra-se nas atividades saudáveis de recuperação:
- Guardar tempo para refletir;
- Arranjar tempo para visitar e ouvir os outros;
- Rezar regularmente dentro de qualquer estilo que se tenha escolhido.
Tudo isto são comportamentos que se ritualizam na recuperação. Todas as atividades saudáveis da recuperação se baseiam em ligar a pessoa aos aspectos do nosso mundo dos quais podemos obter melhoria, alimento espiritual e amor.
À medida que o tempo passa, a pessoa em recuperação encontrará muito conforto nas atividades saudáveis da recuperação. Eu estava trabalhando com uma paciente que se encontrava inserida num programa de Doze Passos.
Ela tinha que fazer algumas viagens de negócios que incluíam ir a diferentes países estrangeiros.
Foi às reuniões do programa de Doze Passos nesses países e encontrou muito bem-estar e serenidade ao ver-se envolvida nas mesmas atividades saudáveis do que no seu grupo habitual a milhares de quilômetros de distância.
Ela não compreendia a língua que falavam os membros estrangeiros desses grupos de Doze Passos, mas compreendia totalmente as suas atividades saudáveis de recuperação.
Foi capaz de encontrar consolação e alimento espiritual na previsível regularidade dessas atividades saudáveis, enquanto renovava o seu compromisso para com a recuperação. As atividades saudáveis dizem respeito à fé, à vida.
Dedicando-se às atividades saudáveis, os dependentes químicos em recuperação ligam-se aos outros e começam novamente a ter fé nas pessoas e em si próprio. Voltando-se para as suas atividades saudáveis em ocasiões de stress, os dependentes químicos em recuperação são capazes de reduzir a tensão pessoal que sentem interiormente.
A Recuperação com a Comunidade
Muitas pessoas vêm dependendo da forma saudável do “nós” de um programa de recuperação. E através do “nós” do processo de grupo que as pessoas sentem confiança em que podem recuperar da sua doença, não sozinhas, mas dentro de uma comunidade de recuperação.
Faz muito sentido que o “nós” seja a primeira palavra do Primeiro Passo de qualquer programa de Doze Passos. Os dependentes químicos em recuperação encontram conforto na presença de outras pessoas, em vez de sentirem receio delas. Começam a ficar centrados no “nós” em vez de se centrarem na dependência química.
Consideram se os amigos apoiariam determinado comportamento ou ação. Tomam decisões sobre como atuar perguntando a si mesmos se se sentiriam bem ou não falando sobre isso com os amigos.
Pedem emprestada uma consciência coletiva até desenvolverem uma consciência pessoal que trabalhe para eles. Em outras palavras, aprendem a ter uma relação interdependente com a sua comunidade.
Em vez de se sentirem totalmente sozinhos no mundo, os dependentes químicos em recuperação começam a considerar-se como parte de uma comunidade mundial.
Tornam-se não só parte da comunidade de Doze Passos, mas também parte da comunidade em que vivem. Aprendem a ser cidadãos – primeiros cidadãos da comunidade de Doze Passos, depois cidadãos de uma comunidade mais alargada.
Poderão fazer trabalho voluntário, fazer donativos a projetos que o mereçam, conversar com os vizinhos e votar. Sentem o “nós” dentro de si e ficam felizes por fazerem de novo, parte do mundo.
Voluntariado e Atos de Serviço
Um dependente químico em recuperação oferece-se como voluntário para fazer coisas pela sua comunidade. Onde terá aprendido isto? Talvez tudo tenha começado na ocasião em que se ofereceu para chegar mais cedo à reunião e fazer café para o grupo.
Lembra-se de como isso lhe fez bem. Recorda as histórias do programa de Doze Passos que dizem que não se pode ficar com nada sem dar qualquer coisa em troca.
Recorda as histórias dos membros fundadores dos Alcoólicos Anônimos que, quando o impulso para beber se manifestava, tentavam ajudar outros alcoólicos em dificuldades. Aprendeu que ao ajudar os outros a pessoa se ajuda a ser mais humano.
Assim, com o tempo, o “nós” do programa expande-se à comunidade envolvente e ao mundo. Em determinada altura durante o processo de recuperação, é de esperar que a família e os amigos comecem a ter confiança no dependente químico em recuperação.
Voltar a depositar confiança no dependente químico em recuperação acontecerá mais cedo se a família e os amigos se dedicarem a examinar a forma como a dependência química os afetou.
É igualmente importante que os dependentes químicos em recuperação comecem a tratar a família e os amigos com dignidade. Se não tratarem a família e os amigos com dignidade e respeito não estão praticando a recuperação.
É através das relações pessoais que os dependentes químicos adquirem a prática de como serem pessoas respeitadoras e que estão se recuperando.
Práticas Respeitosas no Dia a Dia
É fácil fazer isso uma ou duas vezes por semana nas reuniões, mas a recuperação permanente dá-se quando os dependentes químicos em recuperação aprendem, praticam e adotam atitudes respeitosas na sua própria casa, no seu trabalho e quando…
Um dependente químico em recuperação pode desejar perguntar-se, “Estarei agindo de uma forma a respeito da qual me sentiria bem falando sobre isso com os meus amigos?” “Estarei ouvindo as pessoas da minha família com tanta compreensão como ouço os membros do meu grupo?”
A dependência química ataca as relações no interior da família com grande intensidade, porque é aí que uma intimidade profunda e duradoura pode ser cultivada. É aí que o amor e o respeito se tornam mais do que simples palavras.
É dentro de uma família que a pessoa encontra o seu verdadeiro eu. É dentro da família que o Eu se desenvolve ou não cresce. É aí que a recuperação se transforma num estilo de vida.
É tornando-se membros respeitáveis de uma família que se completa o percurso da dependência química em direção à recuperação. Isto pode ser uma tarefa muito difícil. Dentro da família, existe frequentemente muita raiva, medo e desconfiança devido à dependência química da pessoa.
O padrão de antigos comportamentos será uma tentação para um dependente químico em recuperação. Podem existir outras pessoas na família que sejam dependentes químicos praticantes e que recusem tratar o membro que está em recuperação com respeito.
Não importa como são tratados ou considerados pelos outros, os dependentes químicos em recuperação têm de aprender a dar alimento espiritual às outras pessoas dentro do contexto de uma família. Precisam também ser eles próprios dentro do contexto da família.
Ao fazerem isso, os dependentes químicos em recuperação aprendem a tomar a responsabilidade para si e a recuperação torna-se o programa do dia-a-dia.
Quando a recuperação se processa deste modo, muitas pessoas sentem o seu espírito despertar. Quando os dependentes químicos em recuperação tomam consciência de que são capazes de ter relações com o Eu, com um Poder Superior espiritual, com os amigos, a família e a comunidade, sentem-se realizados. Sentem o pleno poder da cura das relações.
Adquiriram tudo o que um programa de recuperação e o relacionamento têm para lhes oferecer. O objetivo de uma pessoa em recuperação é o de se tornar especialista em formar relações que façam sentido.
Um programa de recuperação e os princípios e a solidariedade que encontram nesse programa oferecem aos dependentes químicos em recuperação as bases para terem relações com sentido.
Através da prática diária desses princípios, adquirem a disciplina interior que lhes permite ter relações respeitosas.
Os dependentes químicos em recuperação podem escolher o trabalho de recuperação através do qual irão aprender a disciplinar-se ou podem escolher não se tornar disciplinados.
Para terem relações com o Eu, com um Poder Superior espiritual, com a família, os amigos e a comunidade, os dependentes químicos em recuperação precisam escolher tornarem-se disciplinados.
Quando digo “disciplinados”, isso não significa de forma dura e difícil (a forma adictiva), mas sim de forma aplicada e compassiva. A recuperação é uma escolha e um privilégio.
E um bonito aspecto da recuperação é-nos concedido o poder de escolha. Quando os dependentes químicos escolhem tornar-se pessoas em recuperação e se comportam como pessoas em recuperação, estão a ensinar a si mesmos o que é a responsabilidade, o cuidado e o alimento espiritual que devem ter com a sua própria pessoa.
Está escrito numa das Escrituras: “Dou-lhes a vida. Dou-lhes a morte. Escolham a vida.” É este o significado de recuperar da dependência química.
A Culpa Contra a Vergonha na Recuperação
Porque a dependência química cria e planta vergonha, muitas pessoas entram em recuperação com um profundo sentimento de vergonha em relação a algumas das coisas que fizeram durante a dependência química. Outras pessoas que entram em recuperação podem não sentir qualquer vergonha, achando que não há nada de mal naquilo que fizeram.
No entanto, num determinado momento do seu processo de recuperação, essas pessoas frequentemente passam por um período em que se sentirão muito envergonhadas ao olharem com mais honestidade para as suas ações no passado.
A dependência química diz respeito à vergonha. Quanto mais vergonha, melhor para o processo adictivo.
A vergonha pode ser uma ratoeira para as pessoas de duas maneiras:
- As pessoas podem acabar por se sentir tão deprimidas que começam a acreditar que não há nada que possam fazer a respeito dos seus problemas;
- As pessoas podem pôr-se numa atitude muito defensiva ao tentarem escapar ao seu sentimento interior de vergonha. Ficam consumidas pelas defesas que criam.
Não são capazes de ouvir nem de deixar que ninguém ultrapasse essas defesas. Frequentemente são estas as pessoas que se deixaram levar pelo mito de que têm de ser perfeitas.
A recuperação não tem a ver com a vergonha. A vergonha julga as ações e as aparências da pessoa para condenar como indigna. A vergonha torna-se mais num julgamento contra a pessoa, do que contra as suas ações. A vergonha é corrosiva.
A recuperação deixa um espaço para a culpa. As pessoas em recuperação precisam aprender a diferença entre culpa e vergonha.
A culpa permite que se corrija (ou pelo menos que se pense sobre) a ação malfeita. Permite às pessoas readquirirem a sua dignidade e o seu sentido de respeito por si. A vergonha não permite que nada disto aconteça.
A culpa significa que você cometeu uma ação errada ou que não foi boa nem para si, nem para os outros. A vergonha significa que você está errado.
Com a culpa, se tiver procedido de uma forma que não foi boa, será permitido corrigir a ação e tudo será perdoado e esquecido. Na vergonha não existe perdão e nada é esquecido. As famílias desaprovadoras podem manter esta luta por anos.
A recuperação consiste no processo de admitir a nossa dependência química e a nossa impotência perante ela.
A recuperação é um processo de rendição às realidades do passado e do presente. A recuperação é um processo de reclamar a responsabilidade pelas nossas ações. A responsabilidade é o ponto da recuperação.
Os dependentes químicos em recuperação sentem culpa por terem uma doença; sentem-se culpados por serem dependentes químicos e agirem como tal.
Tudo isso tem de ser admitido. Pode ser difícil aceitar estas questões sem se cair na vergonha.
Os dependentes químicos em recuperação têm de reclamar a sua responsabilidade pelas ações passadas, mas têm ao mesmo tempo de evitar ficar com vergonha por causa delas.
Podem sentir-se mal consigo mesmos por causa da forma como agiram e por causa das pessoas a quem fizeram mal. Isto faz parte da recuperação; faz parte de se ter uma consciência. Mas têm de se manter afastados da convicção de que são pessoas más.
Durante a sua dependência química, a maior parte dos dependentes químicos sente tanta vergonha que ela se torna familiar.
Não gostam da vergonha, mas é útil ao processo adictivo: se pensarem que são pessoas más, podem tirar conclusões de que não são responsáveis pelas suas ações porque as pessoas más praticam más ações. Esta é a lógica adictiva.
Por causa disso, os dependentes químicos em recuperação precisam mudar a perspectiva que têm de si. Em vez de se verem como pessoas más, têm de se ver como pessoas que têm uma doença que faz com que atuem de forma adictiva.
A doença não pode ser curada, mas pode ser tratada se as pessoas que a têm estiverem dispostas a trabalhar pela recuperação.
Continuam sendo responsáveis pelo sofrimento e pela raiva que causaram, mas têm agora um ponto a partir do qual podem começar a sua recuperação: tomam consciência de que não são pessoas más; em vez disso, compreendem que cometeram más ações em relação aos outros e isso afeta a sua consciência.
A vergonha não permite que a pessoa recupere
As pessoas que sentem vergonha continuam agindo mal, pelo menos ocasionalmente, a fim de se convencerem de que são más pessoas.
São estas pessoas que, nos programas de recuperação, ocasionalmente estragam tudo e se comportam como mártires. No seu íntimo, continuam considerando-se más pessoas.
O sentimento de culpa ensina as pessoas a terem responsabilidade pelas suas ações. Uma grande parte do processo de recuperação baseia-se nisso.
Os dependentes químicos em recuperação aprendem a fiscalizar as suas ações, e quando atuam de forma prejudicial, não ficam com vergonha, não se escondem nem se põem na defensiva; reconhecem o seu comportamento e procuram remediá-lo.
Remediar não significa dizer, “Desculpe”. Significa reconhecer e pensar: por causa da maneira como agi, há uma injustiça na nossa relação. Agora preciso descobrir junto da pessoa que ofendi o que é necessário fazer para que a relação se torne outra vez equilibrada.
- Se uma pessoa durante o período da sua dependência química tivesse passado o tempo gritando e enfurecendo-se com o seu cônjuge, remediar esse comportamento não significaria apenas dizer, “Desculpe”. Significava admitir junto do cônjuge: “Fiz isto e fiz aquilo que sei que te causou grande pena e frustração”. E depois, perguntar: “O que é preciso que eu faça para remediar isso?” A seguir, faria o que o seu cônjuge tivesse dito (dentro de limites realistas, porque os dependentes químicos fizeram com que algumas pessoas ficassem com muita raiva) como um ato de reparação.
Assim, responsabilizando-se pelos seus atos, os dependentes químicos em recuperação podem readquirir algumas das relações que perderam por causa da sua dependência química. Somos todos humanos e todos nos comportamos mal.
A culpa ensina as pessoas a verem-se com olhos realistas, mas a vergonha é uma distorção da realidade.
Fabrício Selbman é Diretor do Grupo Recanto, rede de três clínicas de tratamento de dependentes químicos referência no Norte e Nordeste nesse segmento, e também é:
- Formado em marketing e pós-graduado em gestão empresarial;
- Especialista em Dependência Química pela UNIFESP. Especialização na Europa sobre o modelo de tratamento Terapia Racional Emotiva (TRE);
- Psicanalista pela Associação Brasileira de Estudos Psicanalíticos do Estado de Pernambuco (ABEPE);
- Professor de Especialização na Associação Brasileira de Estudos Psicanalíticos do Estado de Pernambuco (ABEPE);
- Diretor do Grupo Recanto, rede de três clínicas de tratamento de dependentes químicos referência no Norte e Nordeste nesse segmento.